terça-feira, 25 de maio de 2010

Chamado

Mortificado sou
dia após dia neste mundo
Cada hora no trânsito
Menos uma hora ao vento
Mergulhado no absurdo
de correr e correr sem cessar
não olho pro lado pra ver
a vida por mim passar
impelido ao trabalho
que eu não posso acreditar
impedido de viver
do que me faça pulsar.

Já estou condenado
sou corrupto desde agora
começo meu dia burlando leis
pra minimizar minhas perdas.
Avanço o semáforo vermelho
ultrapasso qualquer delicadeza
tudo na minha vida é contado
as horas de sono,
o tempo pra chegar no escritório,
uns centavos de beleza.

A liberdade nunca foi um ente tão abstrato
impalpável à experiência concreta
sou um escravo que trabalha,
consome e sofre,
das parcas opções que lhe são dadas.

O negro na senzala
batalhando a alforria
nós em nossos computadores
esmorecendo até a aposentadoria
Pagando carro,
pagando casa,
pagando multa,
pagando imposto,
pagando o direito,
pagando o abuso,
pagando a comida,
caindo em desuso.

Mas temos mais conforto não é mesmo?
E temos, porque temos que tê-lo.
Na nossa miséria confortável
da riqueza do outro pagamos o preço.

Vai ânimo, vai escorrendo pelas costas
As portas estão fechadas, minha boca está vazia
Meu estômago tem náuseas, e à cabeça falta sossego
Enquanto houveres em mim, certamente lhe sugarão
como motor do lucro ou como sítio pra alienação

Não me vendam mais sonhos
lugares pra eu jogar uma ilusão
o que me resta de força e coragem
o que ainda me põe em pé ou me insiste mover
isto ponho a serviço de destruir
toda grade que aprisione
sobretudo as mentiras que existem pra nos conter.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Fogueira

Transformei o maldito amor numa coisa
Gravei-o num CD de músicas
Compilei-o numas folhas avulsas
Inútil fazê-lo, o amor escapou sem demora.
E tomou conta das horas
Fez o que quis dos meus pensamentos
Em vão me joguei no trabalho
O amor me reclamava por dentro.
Reivindicava suas horas de espera
Seu tempo e espaço de existir
O amor já não era só uma idéia
Se tornara uma urgência sem fim.
Me deu febre e insônia
Confiscou a paz dos meus dias
Ateou fogo às minhas propriedades
O amor já não tinha dono.
Tinha vontades de céu e inferno
Me perdia e me salvava num só segundo
No meu peito o espaço do nada
O amor se tornava maior que tudo.
Não havia lei para o amor
Nem havia uma razão que lhe desse cabo
O amor escancarava minhas vísceras
E me entregava à sorte dos meus medos.
Que assim seja, em brasa e êxtase
O mesmo amor que me consome
Com entranhas implacáveis
Vai parindo o que não sei ser.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Nota no rodapé de uma carícia

Eu reinventarei o amor com você
Quantas vezes seja possível
ou até que abraçados e satisfeitos
peguemos no sono sorrindo.
E nenhuma das coisas que eu não sei
é mais forte do que isto.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Paisagem do agora

yo soy patético
você faz uma pergunta
já dando a resposta

a figura de linguagem
não dá conta da vida
o que urge não cabe
numa força de expressão

restam uns instantes calados
em que em vão vou tentando
tirar alguma carta da manga
talvez um coelho da cartola
(que não tenho)

e nestes instantes supensos
me sinto nu como num sonho estranho
todo truque se foi, caiu em desuso
e é só o agora na minha cara
(como me armar diante da vida?)

LET IT BE, OR BLEED
but I can't say words of wisdom
would there be an answer?

Estou me repetindo
andando em círculos
as frases de efeito não dão conta
da vida e seus desassossegos.

and it's a long and wide road

tempo de pé na estrada
o peito cravado na terra
a cabeça gira durante a queda
tudo mais é inútil dizer.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Baila

Você quer dançar tango
eu, uma salsa bem agarrado
um pisando o pé do outro
e ninguém se divertindo.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Agonia no meio do mercado

Privatizaram o tempo
me privaram de parar
o mecânico movimento
privatizaram meu jeito de ver.

Todas as manhãs me debato
entre dormir ou ganhar dinheiro
trabalhar menos uma hora sem fome
entorpecer mais uma hora sem sonho.

Privatizaram o amor
e dele fizeram o atalho perfeito
pra fugir de mim mesmo
e em mim conter tudo que não sei.

Privatizaram meus passos
os caminhos e direções que em vão vou seguindo
cortaram as asas dos pensamentos
e taparam a estrada para o que há de vir.

Privatizaram meus sentidos
compraram o direito de me fazer ver
como um messias debochado anunciaram
que o céu e o inferno é questão de investimento.

Privaram meus medos
meu prazer, meus anseios
e de tanto privatizar
nesse poema só falta o preço.

E assim estamos seguindo
vendendo ou comprando
enquanto o mundo nos consome
e nosso ânimo nos abandona.

Buscamos ser nós mesmos
E no meio do gado permanecemos
Comemos do pasto que nos deixam
E esperamos o abate desatentos.

Coisa triste essa sobrevida
que de outras vontades sempre depende
se ao patrão servimos, somos bem-vindos
se não, somos jogados à nossa sorte.

Mas não se tardam a ouvir
por todos os lados
os gritos invendáveis
dos corações inquietos.

domingo, 9 de maio de 2010

confesso

difícil dizer
o que não se confessa
a quem minha saudade
insiste em chamar
quantos outros possa eu querer
qual deles me daria
teu toque gostoso
teu beijo macio
teu rosto sedoso
e o teu belo sorriso
esse que me pego lembrando
querendo de novo
de que fujo, mas sou pego
e me pego de novo a querer

ai ai ai

quarta-feira, 5 de maio de 2010

68

A burocracia venceu
as necessidades concretas
a ordem e seus princípios
amordaçam a vida que grita.

Onde estão os  ideais
que tanto iam mudar o mundo?
hoje apenas sonhos irreais
de uma juventude ingênua?

O que nos fez levantar a voz
foi um argumento tolo
ou o gemido quase feroz
de quem vivo se torna morto?

Nossos pais mortos em confronto
ou calando omissos frente à tortura
nossos irmãos mendigos, batendo o ponto
ou rezando pra escapar da loucura.

O que resta pois, são só escombros
dos planos que não realizamos
das massas que não se uniram
das orgias e banquetes às nossas custas.

às custas do futuro mais justo
da vida da criança malabarista
da minha riqueza de humano
da nossa paz e da nossa alegria.

Eis que tudo virou produto,
compre bem, pague pra sempre
consuma até algum discurso
e cale seus atos impunemente.

há uma pilha de escombros, não há dúvida
seu cheiro e seu aspecto nos nauseiam
mas saiba, ali ainda habita
o germe que leva a vida adiante.

a vida fede, soterrada
ela prossegue mesmo ferida
mas um dia há que enfim eclodir
o clarão inevitável da vida.

não na coroa de um redentor
nem pelo alcance das idéias
a vida virá à tona furiosa
porque está grávida da miséria.